Derivando num mundo completamente mapeado
Quantas vezes os mapas nos pareceram frios e pragmáticos? Você já sentiu que uma rua era algo mais do que um espaço físico cercado por duas calçadas? Com que freqüência você se vê pisando em lugares completamente novos em sua própria cidade? Quantos lugares você sequer visitou, mas intuitivamente parece conhecê-los de tal maneira que não deseja nem sequer visitá-los? Você é um turista?
As perguntas poderiam se avolumar aos montes enquanto as respostas ainda não começariam um texto, mas é impulsionado por perguntas e segredos que espero expor algumas idéias e desvendar alguns lugares.
A psicogeografia como vontade e representação
A psicogeografia é definida, no texto que apresenta o termo pela primeira vez, como “o estudo das leis precisas e dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente organizado ou não, em função da influência direta sobre os comportamentos afetivos dos indivíduos” (Debord, 1955). As impressões que algumas ruas passam; os diferentes convites que as esquinas fazem; a propensão para a malevolência que um lugar tem; a dificuldade de se manter sóbrio em um quarteirão ou cidade; a desorientação que um bairro impregna nas pessoas. São formas de experimentar e registrar as impressões psicogeográficas.
Nesse texto, Debord comenta a antiga afirmação de que o deserto é monoteísta, questionando se “seria ilógico ou desprovido de interesse a constatação de que o distrito de Paris, entre a Praça Contrescarpe e a rua l’Arbalète conduz ao ateísmo, ao esquecimento e a desorientação das influências habituais?”
Para mim a Av. Marechal Campos muitas vezes provocou-me essas influências, atravessá-la ou cruzá-la trás sempre uma sensação de perigo. A desorientação que essa avenida me provoca já me pôs em 3 ou 4 situações de risco.
A existência desses micro-climas vem intrigando diversas pessoas e provocando nelas os mais diversos tipos de reações. Na literatura Dostoievski afirma que São Petersburgo é uma cidade meditativa e que Paris é assombrosa (Notas de inverno sobre impressões de verão). Thomas De Quincey n’As confissões de um comedor de ópio procura uma passagem para o noroeste em Londres e percebe que a cidade pode ser um labirinto, onde a pessoa que ele procura poderia estar a poucos metros dele sem que ele conseguisse encontrá-la, os exemplos são muitos e, vários são experimentados inicialmente através da experiência de caminhar pela cidade. A caminhada é quem escreve as primeiras linhas nas consciências desses escritores.
A deriva
A deriva é um estudo e um jogo ao mesmo tempo, um estudo porque funciona como instrumento de análise da cidade, não existe uma interface “atravessadora” entre o derivante e a cidade. Não pode se sentir o clima de um bairro no ar condicionado, tão pouco se guiar pelas impressões através das rotas pré-estabelecidas dos coletivos. Mas ao contrario do significado que vem no dicionário, a deriva, pelo menos a de origem situacionista, não é simplesmente andar sem destino. Não existem jogos sem regras, na definição de Huizinga jogo é “uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana.”
Com essa definição de limites, regras e sentimentos de tensão e alegria, a deriva situacionista estudou bairros, cidades e ideias urbanistas. Sua influência vai desde o revolucionário grupo Provos até o orçamento participativo das cidades capitalistas democráticas. O Urbanismo Unitário também serviu para diversas intrigas dentro do grupo.
Alguns membros do Coletivo Expurgação experimentam com a deriva e o resultado disso são desde pensamentos, conversas, intervenções até pesquisas e experimentos. É o caso do Chicow que fez da deriva uma ferramenta e das experiências e resultados o trabalho de conclusão do curso de Desenho Industrial.
Mapeamento e vigilância
Não tem mais um cm² não fotografado sobre a terra. O que os satélites não monitoram, as câmeras de vigilância e as portáteis de civis se encarregam de vigiar ainda mais de perto. O céu e a terra estão sendo gravados, mas um senso de história escapa cada vez mais às mentes, a memória esvai do cérebro, para morar em todo tipo de registro externo. Nunca arquivamos tanto bytes! Mas ainda fazemos história, quando não servimos ao espetáculo moderno.
Do mesmo jeito que o urbanismo pretende um modelo de cidade que, no capitalismo privilegia o automóvel e vê na circulação uma extensão do trabalho, ao invés de enxergá-la como possibilidade de prazer, encontro, etc. Os novos usos para a cidade surgem a todo instante, para contrariar o predicado do planejamento. Do Le Parkour ao Grafite, do skate às ocupações de espaços subutilizados, do ciclismo suicida às manifestações nas ruas.
A vontade de trilhar o próprio caminho pode ser a teimosia que nos empurrará para o abismo do individualismo radical ou para comunidades e cidades que incluam e compartilhem.
Leonardo Prata
Verão de 2012.
ANEXO
Derivas no Morro da conquista (Le Parkour Down hill na favela)
Durante 3 meses tive que subir o morro da Conquista , o enorme número de escadarias eram um convite a experiência labiríntica.
Os primeiros contatos foram fazendo as inscrições dos alunos para as oficinas de dança de rua do Circuito Cultural. Durante uma semana meu rosto conhecido ficou na comunidade, eu era “o cara da prefeitura”, “daquela parada de dança”. Fiz questão de convidar jovens ociosos, público alvo das oficinas, mas uma relutância e preconceito da parte deles fez com que a oficina fosse realizada praticamente por crianças.
Duas vezes por semana eu subia e descia o morro. Ele tem pelo menos 3 acesso por escadarias que se ramificam a perder as contas. Sempre subia pelas duas primeiras (do lado de quem vem de São Pedro) por serem mais próximas, mas era na descida que a mágica acontecia. Descia correndo e pulando, sempre escolhendo caminhos diferentes.
Curiosamente nunca tomava uma escadaria mais a nordeste. No último dia da oficina as despedidas atrasaram um pouco o término e precisei descer a escadaria à noite, desci correndo freneticamente. Saltava e ouvia latidos de cachorros. Num desses ouvi uma voz masculina da janela dum barraco dizer “Aqui você não corre não”, diminui a velocidade num reflexo bem rápido, mas a euforia não parou junto comigo. Eu descia andando, mas pulsando.
Foi quando vi pela primeira vez a esquina do tráfico no morro, passei por eles e dei boa noite, mais uns lances de escada e eu estava na Av. Serafim Derenzi. Esse tipo de coincidência me faz acreditar totalmente na psicogeografia, nas impressões e sugestões do espaço físico. Dei sorte de não pensarem que eu era algum invasor, inimigo ou policial.
não há mapas, georreferenciamentos e smartphones que substituam uma boa deriva né brother.
Vez em quando penso em como somente desvendamos lugares após anos de travessia diária por eles. Crazy como o isolamento encaixotado nos veículos de transporte e a velocidade vivida nesses espaços de fluxo anestesiam essas apreenções urbanas.
Experimente observar os telhados e pisos superiores ao térreo, mesmo enquanto passa de carro e ônius, e perceba a transfiguração da paisagem como é interesante.
esses comentários sobre as descidas frenéticas pelas escadarias me fez lembrar uma descida kamikaze que fizemos pela trilha da Pedra dos Dois Olhos a alguns anos atrás. rs
Boto fé Conrado, aquela descida foi alucinante mesmo. Eu, você e Juliano puxando o bonde da insanidade e o cajado da sabedoria nos salvando do precipício! O down hill na favela lembrou bastante essa descida da pedra dos 2 olhos, mesmo sendo num ambiente bem diferente. O que mais me intrigou nessa descida em Conquista foi o fato de, em 3 meses, não ter descido uma vez sequer pela escadaria do movimento, achei isso profundamente psicogeográfico. Embora relatar essa sensação psíquica seja um pouco complicado para mim.